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7.3 Podemos implantar lentes multifocais em militares? Independência de óculos versus qualidade visual.

A independência de óculos, e lentes de contacto, é particularmente atrativa nos militares, sobretudo quando se consideram cenários de combate ou de atividade física intensa.

Os óculos não são compatíveis com vários sistemas de armamento atuais que requerem equipamento na cabeça, como óculos de visão noturna, sistemas de alvo montados na cabeça e capacetes de proteção biológica/química.

Os problemas associados aos óculos incluem restrição da visão periférica, embaciamento, incompatibilidade com mergulho/natação, e possibilidade de deslocação com a aceleração positiva (+Gz).

As lentes de contacto, apesar de oferecerem vantagens, podem também acarretar vários problemas operacionais.

A intolerância às lentes de contacto hidrófilas limita a sua utilidade em ambientes quentes, poeirentos ou secos.

As lentes hidrófilas são incompatíveis com material de proteção biológica/química.

Além disso, a higiene das lentes ou a sua substituição é muitas vezes pouco prática ou impossível durante as operações no terreno, o que faz com que os militares acabem por não as usar ou estender o seu padrão de utilização com risco adicional de complicações.

 

QUALIDADE VISUAL E LENTES MULTIFOCAIS

A catarata é uma condição frequente que compromete a acuidade visual e que afeta 36 milhões de indivíduos no mundo ocidental.

A implantação de uma lente intra-ocular (LIO) monofocal após remoção cirúrgica da catarata via facoemulsificação é o tratamento standard.

A introdução das lentes intraoculares multifocais (MIOLs) nos anos 80 veio oferecer a possibilidade de independência de óculos após a cirurgia de catarata ou extração de cristalino claro.

Nos últimos anos estas lentes têm sofrido uma evolução significativa com o desenvolvimento de alternativas que privilegiam a correção de diferentes distâncias de trabalho.

A Fig. 1 demonstra as acuidades visuais médias para diferentes distâncias de um grupo de estudo que avaliámos com várias MIOLs1.

 

 

Fig. 1 – Curvas de desfocagem para diferentes lentes trifocais (Finevision e Panoptix) e de foco estendido (Symfony e Mini Well). Setting: Hospital da Luz Lisboa.

Contudo, este tipo de lentes está associado a algumas limitações.

Por um lado, disfotopsias, como halos e glare e por outro lado, uma menor sensibilidade ao contraste, especialmente em condições mesópicas, em comparação com as LIO monofocais asféricas.

Apesar da sensibilidade ao contraste em indivíduos com MIOLs ser menor em comparação com indivíduos com LIOs monofocais, está geralmente no intervalo normal de contraste em comparação com indivíduos fáquicos do mesmo grupo etário2,3.

Estas disfótopsias podem estar parcialmente compensadas pela somação binocular, que diminui o índice de distorção luminosa no caso das lentes multifocais e que temos caracterizado nos nossos doentes (Fig. 2).

Além disso, a avaliação dos nossos doentes tem demonstrado que fenómenos como a somação binocular e a neuroadaptação contribuem para a diminuição dos fenómenos disfóticos e para a melhoria da sensibilidade ao contraste ao longo dos primeiros 6 meses depois do implante de MIOLs (Fig. 3 e 4).

O seguimento pós-operatório permitirá melhor entendimento e caracterização destes fenómenos e pode vir a melhorar a nossa capacidade correctiva.

 

 

Fig. 2 – Índice de distorção luminosa em visão monocular e visão binocular, obtida por Ligth Distortion Analyzer (protótipo da Universidade do Minho), de doentes fáquicos com catarata inicial e doentes submetidos a cirurgia da catarata com lentes monofocais e multifocais. *estatisticamente significativo (p < 0.05) comparado com grupo controlo; **estatisticamente diferente (p < 0.05) entre monocular e binocular para cada grupo. Setting: Hospital da Luz Lisboa.

 

 

Fig. 3 – Adaptação a curto e médio prazo aos fenómenos disfóticos após implante de MIOLs. Avaliação do score de Qualidade de Visão (frequência, intensidade e grau de perturbação da disfotopsia) aos 1, 3 e 6 meses após cirurgia. Setting: Hospital da Luz Lisboa.

 

 

Fig. 4 – Adaptação a curto e médio prazo aos fenómenos disfóticos após implante de MIOLs. Avaliação da sensibilidade ao contraste e sensibilidade ao contraste e glare aos 1, 3 e 6 meses após cirurgia. Setting: Hospital da Luz Lisboa.

 

MULTIFOCAIS E MILITARES

A cirurgia de catarata e a extração do cristalino claro são procedimentos raros antes dos 40-45 anos pelo que não é frequente a hipótese destes procedimentos em candidatos às forças armadas.

Todavia, a possibilidade de implante destas lentes é um cenário cada vez mais frequente em militares no ativo, e a sua discussão é por isso um assunto atual e relevante pelos requisitos de desempenho visual exigidos a esta população, e pelas teóricas vantagens que esta solução refrativa pode oferecer.

É útil distinguir dois grupos de indivíduos: os pertencentes ao serviço militar geral e os pilotos, já que os requisitos de desempenho visual são habitualmente mais exigentes neste último grupo.

 

SERVIÇO MILITAR GERAL

As “Tabelas gerais de inaptidão e de incapacidade para o serviço nas Forças Armadas” publicadas em DR (Portaria no 1157/2000), e que reúnem as condições para inaptidão dos candidatos, são omissas relativamente a procedimentos refrativos prévios, bem como à avaliação da sensibilidade ao contraste ou sensibilidade ao glare.

O Relatório Técnico da Research and Technology Organisation (RTO) da NATO (TR-HFM-191)4, dedicado à abordagem dos erros refrativos nos militares, publicou um resumo das atuais políticas referentes à cirurgia refrativa para cada país membro da NATO, incluindo cirurgia refrativa laser, lentes fáquicas e multifocais.

Em Portugal, e na maioria dos países membros, o implante de MIOLs não é permitido no Serviço Militar Geral. Contudo, Espanha, EUA e Alemanha já permitem a utilização deste tipo de lentes para militares e a Dinamarca contempla a utilização destes implantes com uma decisão “caso-a-caso”.

 

PILOTOS

Os pilotos durante o voo têm de constantemente utilizar várias distâncias de leitura em várias posições e em várias condições de iluminação.

A visão de longe é essencial para controlo do que se passa fora do cockpit mas a visão intermédia e de perto são fundamentais para leitura dos múltiplos mostradores e instrumentos a diferentes distância nos painéis frontais, inferiores e superiores e do material impresso e escrito que pode ser necessário consultar durante o voo (Fig. 5).

A presbiopia impõe assim um desafio adicional para os pilotos e soluções como lentes contacto multifocais, monovisão ou utilização de óculos monofocais não são habitualmente aceites pelas autoridades de regulação.

Os óculos com lentes progressivas são permitidos, mas muitas vezes requerem adaptação para leitura dos instrumentos e mostradores nos painéis superiores.

Após cirurgia de catarata, apesar das lentes monofocais oferecerem uma excelente acuidade visual para longe, não possibilitam todas as distâncias de trabalho necessárias a um piloto, pelo que se torna indispensável o uso de correcção óptica com as limitações referidas.

 

 

Fig. 5 – Distâncias de trabalho necessárias para um piloto de avião.

No entanto no ambiente de voo devemos considerar alguns fatores que podem comprometer o desempenho visual significativamente: os pilotos estão sujeitos a baixos níveis de luminosidade, mas também a elevadas intensidades de luz que podem condicionar glare “e baixa acuidade visual”.

A altitude afeta a qualidade e quantidade de radiação eletromagnética a que a tripulação está sujeita. No voo por cima das nuvens, a luz solar é refletida para cima.

Esta distribuição inversa da luz deixa o painel de instrumentos na sombra, enquanto que o exterior está muito iluminado.

Além disso, o grau ligeiro de hipoxia que existe, mesmo numa cabine pressurizada, pode afetar a adaptação ao escuro, reduzir os campos visuais e acuidade visual e causar um ligeiro aumento da pressão intra-ocular.

Temos também de considerar a baixa humidade do ar da cabine que pode provocar secura da superfície ocular associada a má qualidade visual.

No Relatório Técnico da NATO já referido não é permitida a utilização de MIOLs em pilotos militares na maioria dos países-membros, incluindo Portugal, com exceção de Espanha e Bélgica, que apenas não permitem a candidatos a pilotos.

Também na aviação civil existe regulamentação exigente relativa aos requisitos visuais pós cirurgia refrativa.

O Manual de Medicina de Aviação Civil da Organização de Aviação Civil Internacional (ICAO)5 enumera os principais riscos deste tipo de cirurgia do ponto de vista da aviação: perda de MAVC, flutuação da AV ao longo do dia, disfotópsias como halos, glare ou starburst e perda da sensibilidade ao contraste.

Na Europa, a Agência de Segurança de Aviação Europeia (EASA) na sua regulamentação sobre a certificação médica para pilotos e controladores de tráfego aéreo6,7 , pela qual a ANAC se rege em Portugal, refere que a certificação é possível depois de 2 meses pós-cirurgia de catarata deste que os requisitos visuais sejam cumpridos e que tenha sido implantada LIO ou lente de contacto monofocais e não coloridas.

Ou seja, as MIOLs não são permitidas para estes profissionais.

Nos EUA, a entidade reguladora da aviação civil, a Federal Aviation Administration, emitiu recentemente um protocolo referente a MIOLs em que autoriza estes implantes nas tripulações8.

A certificação pós-operatória dos tripulantes requer um período mínimo de 3 meses pós cirurgia e um relatório médico que garanta a ausência de complicações operatórias, refração estável e não existência de glare, flare ou outros fenómenos visuais que possam afetar o desempenho visual e ter impacto na segurança da aviação.

Contudo, a Força Aérea Americana nas suas orientações de 2012 9 proíbe a utilização de MIOLs e LIO acomodativas9.

Também não são permitidas LIOs monofocais com desenho em prato, com cromóforos para bloqueio da luz azul e orifícios de posicionamento.

 

CONCLUSÃO

As lentes intraoculares multifocais podem ser uma forma eficaz de ultrapassar as limitações que os erros refrativos e presbiopia impõem aos militares e pilotos no seu dia-a- dia.

Em alguns países o uso destas lentes já é autorizado, mesmo em pilotos.

Apesar de as regulamentações atuais em Portugal não permitirem o uso destes dispositivos em militares e pilotos da aviação civil, é possível, pela evolução tecnológica a que temos assistido e os dados mais recentes sobre a sensibilidade ao contraste e fenómenos disfóticos, que estas recomendações venham a ser revistas, tal como aconteceu com a cirurgia queratorefractiva, uma vez que a independência de óculos é também um elemento muito favorável a esta actividade profissional.

Autore(s)

Departamento de Cirurgia Implanto Refractiva do Hospital da Luz - Lisboa. Lisboa, Portugal

(Direção de Serviço: Filomena Ribeiro)

Departamento de Cirurgia Implanto Refractiva do Hospital da Luz - Lisboa. Lisboa, Portugal

(Direção de Serviço: Filomena Ribeiro)