3.3 Ponteiros laser - seguros ou perigo de saúde pública?
Introdução e enquadramento
Os ponteiros laser têm sido alvo nos últimos anos de múltiplas publicações descrevendo lesões oculares após exposição aos mesmos, pondo em causa a sua clássica noção de segurança.1-5
A grande maioria destes casos envolve jovens do sexo masculino com traumatismo direto ou por reflexão do laser em espelhos.2,4
O alargamento da sua utilização a fins ditos recreativos associada à sua facilidade de aquisição e ao baixo preço têm contribuído para a ocorrência de tais casos.6
Em paralelo tem-se registado um aumento significativo das exposições laser intencionais em eventos desportivos e aéreos.6,7
A título de exemplo, a US Federal Aviation Administration reportou em 2014 três mil novecentos e noventa e quatro incidentes relacionados com laser, apesar de já estarem instituídas multas aos transgressores e recompensas a informantes.7
Um dos fatores de risco para a má utilização dos ponteiros laser é sem dúvida o desconhecimento ligado às idades mais jovens (crianças e adolescentes) que frequentemente os manipulam.
No entanto, esta falta de conhecimentos não é exclusiva da idade pediátrica, atingindo inclusivamente a classe médica, teoricamente mais esclarecida.
Alsulaiman et al publicaram recentemente um estudo baseado num questionário dirigido a médicos de várias especialidades e optometristas, concluindo que dois terços da população inquirida usava ponteiros laser, sendo que 82% destes desconheciam a sua potência e 90,7% não sabiam sequer qual o limite de segurança dos mesmos.8
Um provável promotor para este desconhecimento é a existência de disparidades geográficas entre os sistemas de classificação laser.
A potência de saída dos ponteiros laser não deve exceder 5mW no espetro visível (400-700nm) o que corresponde no máximo à classe IIIa pelo Code of Federal Regulations ou classe 3R comercial pelo American National Standards Institute.9,10
Na Europa a classificação é determinada pelo International Electrotechnical Commitee, com geração de normas europeias, estando os ponteiros laser em Portugal definidos pela norma europeia EN 60825-1:1994 (com as alterações introduzidas pelas emendas EN 60825-1:1994/A11:1996 e EN 60825-1:1994/A2:2001) (Figura 1).11
Existe uma importante diferença na definição da classe 3A: além da potência não poder exceder 5mW, o limite máximo de irradiância é de 25W/m2 .12
Esta diferença aparentemente subtil pode implicar que lasers classificados como IIIa nos EUA sejam classe 3B na Europa.
A classe 3B bem como a classe IV implicam um risco conhecido de lesões oculares mesmo com exposições fugazes, não sendo seguros para uso fora de contextos específicos como o de tratamentos médicos.
Figura 1 – ponteiro laser classe 2 (635-670nm), com rotulagem correta.
Em Portugal a venda de ponteiros laser está limitada a maiores de 18 anos devidamente identificados, tendo o comprador que assinar inclusivamente um termo de responsabilidade.11
Ora, atualmente a grande maioria dos lasers são produzidos a baixo custo em países asiáticos segundo a classificação americana, mas são vendidos pela internet (figura 2) sem quaisquer limitações ou controlo por toda a Europa, pelo que é fácil assumir que as especificidades de segurança não são completamente cumpridas.
Figura 2 – ponteiro laser (“brinquedo para gato”) sem qualquer rotulagem.
Ainda, estudos recentes trouxeram a lume que muitos dos ponteiros laser comprados no mercado não regulado não 25 3.3 possuem qualquer classificação ou que esta está errada.9,12
Moseley et al examinaram 30 ponteiros laser apreendidos pela polícia escocesa concluindo que 28 deles (93%) eram classe 3B europeia e 3 deles eram mesmo classe IIIb americana, isto é, com potências superiores a 5mW.
A irradiância máxima medida neste estudo foi de 242W/ m2 quase dez vezes superior ao máximo permitido pela definição da classe 3A.12
Num outro estudo Hadler et al analisaram 122 ponteiros laser classificados como classe 3R concluindo que 90% dos ponteiros verdes e 44% dos ponteiros vermelhos não cumpriam as especificações da classe, excedendo os seus limites.
Os autores concluíram existir uma alta probabilidade de um laser classificado como 3R ser de fato um laser da classe 3B, não seguro para uso doméstico.9
Outro perigo crescente relaciona-se com o aparecimento dos ponteiros laser de “alta potência” ou “militares” que publicitam poder ser usados para os mais diversos fins “recreativos” (atear fogos, furar balões e cartões, etc), contrariando as orientações do Public Health England que recomenda que os “brinquedos” laser sejam no máximo da classe 2 (potências de saída até 1mW).1,7,9,10
Os laser de alta potência são verdes com comprimentos de onda de 540nm muito próximos do ponto de sensibilidade fotópica retiniana e potências de saída excedendo 2000mW.
Em alternativa encontram-se também ponteiros díodo azuis com potências de saída excedendo 6000mW.10
As altas potências associadas às capacidades refrativas da córnea e do cristalino, que per se podem induzir um aumento da irradiância da radiação ótica que atravessa o olho até 10 5, explicam facilmente que se ultrapassem os níveis máximos de exposição permissíveis e sejam portanto “brinquedos” potencialmente muito perigosos.13
Acresce que em Portugal é ilegal a existência de ponteiros laser “brinquedos”, conforme redação do Decreto-lei 163/2002, de 11 de julho: “... não podem apresentar-se integrados em objetos cuja aparência induza, ou seja suscetível de induzir, os consumidores a dar-lhes uma utilização diferente daquela para que foram concebidos, nomeadamente com formas apelativas para as crianças que os tornem suscetíveis de serem confundidos com brinquedos”.11
Lesões oculares e laser
Os lasers podem causar lesões retinianas por três tipos de interação laser-tecido: efeito fototérmico, efeito fotoquímico e efeito mecânico.7
A localização das lesões no olho depende do comprimento de onda.
O tipo de lesão depende de vários fatores quer do laser, como o tempo de exposição, a potência de saída, o tamanho do spot e a duração de pulso, quer do olho como o diâmetro pupilar, a transparência dos meios, o ritmo de pestanejo e o tipo/capacidade de fixação.7,12-14
As lesões podem ser uni ou binoculares.
A exposição laser pode induzir deslumbramento, formação de pós-imagens, encadeamento e/ou alterações da acuidade visual.
Tal pode ser precedido ou coincidente com a audição de um estalido.
Dor ocular, olho vermelho ou irritação não são efeitos diretos do laser.1,13
Nas crianças e adolescentes existe muitas vezes um atraso na consciencialização e verbalização das queixas oftalmológicas pois, por um lado podem não relacioná- las com a exposição ao laser, e por outro podem mesmo negar os incidentes o que leva a dificuldades diagnósticas acrescidas.1,15
Ainda, a menor ou ausente noção de perigo pode potenciar a fixação do feixe laser e não a aversão ao mesmo, aumentando a probabilidade de produzir dano ocular.
Assim, a avaliação clínica tem de passar obrigatoriamente por uma colheita exaustiva da história e um minucioso exame oftalmológico, com especial atenção para a visão central (Grelha de Amsler/outro).6
A fundoscopia pode revelar uma panóplia de alterações, nomeadamente depósitos perifoveais drusen-like/ conglomerados de pigmento, granularidade foveal, lesões foveolares circulares de hipopigmentação, hemovítreo e hemorragias retinianas a diferentes níveis.3,13
Outras alterações reportadas, quer em fase aguda, quer em fase evolutiva são buraco macular, membrana epi-retiniana, neovascularização coroideia e cicatrizes do epitélio pigmentado da retina (EPR).1,5,16,17
O prognóstico visual está obviamente intimamente associado ao tipo e à gravidade das lesões observadas.
Robertson et al num estudo clinicopatológico revelaram alterações ao nível da microscopia eletrónica consistindo em vacuolização dos segmentos externos dos fotorreceptores, perda das microvilosidades das células do EPR, anomalias do formato dos grânulos de pigmento, presença de lipofuscina e dispersão dos grânulos no tecido retiniano mais externo.
Estas alterações têm uma correspondência com alterações observadas na tomografia de coerência ótica (OCT) estrutural.18
O OCT é um exame basilar na caracterização destes doentes e no seu follow-up.
Recentemente Raoof et al apresentaram uma classificação da retinopatia laser em 24 olhos baseada nos achados observáveis ao OCT em:
1) ligeira, com melhor prognóstico, quando se observa disrupção retiniana focal confinada às camadas dos fotorreceptores e elipsoide;
2) moderada, com disrupção retiniana difusa confinada às camadas externas e
3) severa, com perda da arquitetura subfoveal da retina externa em associação à presença de bandas suprajacentes híper- reflectivas da retina interna.15
No início do presente ano, Tomasso et al descreveram áreas de hipodensidade ao nível da segmentação coriocapilar no OCT-angiografia (OCT-A) correspondente às áreas focais de híper-reflectividade no OCT estrutural num caso clínico, propondo que tal possa corresponder á rarefação da coriocapilaris, indicando que as lesões laser não estão limitadas somente ao EPR.19
Relativamente aos outros exames auxiliares de diagnóstico, o electroretinograma multifocal pode revelar perturbações focais, bem como a microperimetria.2,4,17
Na angiografia fluoresceínica podem encontrar-se ausência de alterações ou áreas de hipofluorescênccia precoce com leakage tardio.16
A angiografia com verde de indocianina pode revelar focos de não perfusão coroideia na área afetada, estando de acordo com os achados do OCT-A já supracitados.3,19
O único tratamento proposto, excetuando quando são detetadas alterações com terapêuticas específicas, tem sido corticoterapia oral, com eficácia limitada.2
Conclusões e take-home messages
Todos os lasers devem ser usados com cuidado por pessoas treinadas com formação específica e com capacidade para se responsabilizarem/serem responsabilizados pelo seu manuseamento.
Quando bem usados, os ponteiros laser de classificação 2 ou 3A (europeia) não constituem qualquer risco, dado o reflexo de pestanejo e a reação de aversão visual.
A cor vermelha é igualmente mais segura do que a cor verde ou azul pois está mais afastada do pico de sensibilidade retiniana e provoca uma reação de defesa mais eficaz e célere.
Para se estabelecer um diagnóstico de retinopatia laser é importante um alto grau de suspeição e uma avaliação clínica minuciosa complementada no mínimo com a realização de OCT estrutural, nunca esquecendo que os incidentes laser podem ter implicações médico legais importantes.
As crianças são um grupo com especificidades próprias, sem maturidade suficiente para perceber que os ponteiros laser apesar de por vezes rotulados de “brinquedos” constituem potencialmente uma arma.
Assim, a população pediátrica não deve ter acesso a qualquer tipo de manipulação laser.
Este princípio implica a necessidade de criação de programas de alerta e prevenção e a monitorização/bloqueio da compra e venda não regulada dos ponteiros laser, sob pena de, de fato, poderem constituir uma ameaça para a saúde pública.