7.4 Vôos Comerciais - a hipóxia das cabines aéreas tem consequências no olho?
Estima-se que, anualmente, mais de 2,5 mil milhões de passageiros se desloquem entre vários destinos em aviões comerciais.
Atualmente, a grande maioria dos aviões utilizados na aviação comercial desloca-se ao nível da troposfera, a altitudes reais na ordem dos 12.000 metros.1,2
A diminuição da pressão atmosférica com a altitude torna a pressão de oxigénio inspirada a 12.000 metros de altitude incompatível com a vida, sendo apenas possível o vôo, nestas condições, recorrendo à pressurização da cabina.
Por motivos técnicos e económicos, e de acordo com as regras da aviação civil, esta pressurização tem de ser superior a 565 mmHg (0,74 atm).
Assim sendo, viajar dentro de um avião comercial pressurizado é equivalente a permanecer a uma altitude igual ou inferior a 2438 metros (8 000 pés), o que corresponde a respirar 15-16% O2 ao invés dos 21% O2 encontrados ao nível do mar.3
Num passageiro adulto jovem e saudável, esta hipóxia determina uma PaO2 entre os 53 e os 64 mmHg e uma saturação periférica de O2 entre os 85 e os 91%, em repouso.4
A fisiologia da microvasculatura ocular em situações de hipóxia tem sido tema de vários estudos5,6, permanecendo por compreender a existência de eventuais repercussões para o olho da hipóxia das cabines de vôo comercial.
Na prática clínica, como "stress hipóxico", o teste mais utilizado é o Teste de Provocação da Hipóxia (TPH)4,7, que mimetiza a hipóxia da cabine aérea, em condições normobáricas, reduzindo a fracção inspiratória de oxigénio (FiO2 ) para os 15-16% da cabine aérea.
O protocolo mais utilizado e económico é proposto pela British Thoracic Society (BTS), e que se encontra muito bem caracterizado na literatura.8
Do ponto de vista oftalmológico, a angiografia por tomografia de coerência óptica (OCT-A) é uma recém- desenvolvida ferramenta diagnóstica que permite visualizar a microvasculatura da retina de forma rápida e não invasiva, podendo complementar assim o TPH.9
Com o objetivo de caraterizar as alterações da microvasculatura retiniana em condições de hipóxia, desenhamos um estudo piloto que incluiu 30 indivíduos saudáveis, realizado em colaboração com o departamento de Pneumologia e aprovado pela comissão de ética do Centro Hospitalar Lisboa Norte.
Foram incluídos no estudo 30 indivíduos saudáveis (14 mulheres), todos submetidos ao TPH e avaliados por OCT-A (AngioVue®) em três momentos:
1. basal,
2. hipóxia,
3. pós-hipóxia; respeitando o protocolo de avaliação da BTS.
Foram avaliados através da quantificação realizada pelo software do aparelho de OCT-A a densidade vascular macular e peripapilar, respetivamente (figura 1).
Fig. 1 - Imagem obtida por OCT-A: microvasculara retiniana macular (à esquerda) e do disco óptico (à direita).
A média de idades da população estudada foi de 28.8 ± 4.2 [intervalo 22-37] anos.
Dos resultados, destaca-se o aumento estatisticamente significativo dos valores de densidade vascular peripapilar e parafoveal em condições de hipóxia (figuras 2 e 3).
Em condições de repouso após o TPH, os valores de densidade vascular diminuíram para valores semelhantes aos encontrados em situação basal, antes do TPH.
Recorrendo a OCT-A, este estudo documentou pela primeira vez alterações da microvasculatura retiniana (macular e peripapilar) em condições de hipóxia ligeira, como a encontrada nas cabines das aeronaves comerciais.
Fig. 2 - gráfico representando a alteração dos valores de densidade vascular peripapilar avaliados por OCT-A.
Fig. 3 - gráfico representando a alteração dos valores de densidade vascular parafoveal avaliados por OCT-A.
Foi encontrada uma diferença estatisticamente significativa (p<0.05) entre os valores em condições baseline e de hipóxia. OD - olho direito; OS - olho esquerdo.
Os resultados obtidos reproduziram achados experimentais em outros estudos, que documentam uma resposta fisiológica de vasodilatação e aumento do fluxo retiniano em condições de hipóxia.5
Neste sentido, acreditamos que a tecnologia de OCT-A e o protocolo de TPH poderão ser úteis em estudos futuros que contribuam para a melhor compreensão das repercussões da hipóxia dos vôos comerciais em olhos saudáveis e, com maiores implicações clínicas, da resposta vascular em condições patológicas.
LIMITAÇÕES
Na avaliação clínica da hipóxia da cabine aérea, o método considerado gold standard é a câmara hipobárica, cuja complexidade tecnológica e dimensão a torna relativamente inacessível em estudos clínicos.
O TPH não reproduz as variações de volume intracavitário com as diferentes pressões nem induz libertação de azoto nos tecidos como a câmara hipobárica.
A avaliação das alterações em condições de hipóxia foi efetuada num momento único (30 minutos após o início do TPH), de acordo com o protocolo da BTS.
No entanto, desconhece-se se o efeito se mantém em períodos mais prolongados de hipóxia, de duração aproximada à maioria das viagens de avião.
A quantificação da densidade vascular através do software do aparelho de OCT-A utilizado ainda carece de validação quanto à sua repetibilidade e reproducibilidade.
Além disso, a existência de vários artefactos relacionados com esta nova tecnologia devem ser tidos em conta.10
No âmbito da Ergoftalmologia devem ser consideradas outras repercussões a nível do olho, principalmente nos passageiros muito frequentes e tripulação (e.g. alterações na superfície ocular e pressão intraocular11), não avaliadas neste estudo piloto, e que deverão ser apreciados em trabalhos futuros.
Poderá a exposição e necessidade de adaptação constante a condições de hipóxia estar associada a efeitos significativos do ponto de vista oftalmológico?
Com repercussões apenas em indivíduos com patologia prévia ou também nos saudáveis?
Estudos futuros ajudarão certamente a encontrar resposta para estas e outras questões relacionadas com os efeitos da hipóxia no olho humano.